quarta-feira, dezembro 29, 2004
DESCONTO DE NATAL: Passou despercebido mais um belíssimo conto de Natal de João César das Neves, no Diário de Notícias de anteontem. Desta vez, o economista beato conta-nos a história de Maria, uma jovem cristã, e dos seus três amigos: o Fernando, que é ateu, a Cláudia, que é budista e o Ibrahim, que é muçulmano. Reside aqui, para mim, o primeiro golpe de génio de César das Neves: há mais raças e credos no grupo de amigos da Maria do que na ONU. “Temos parábola”, pensa o leitor, entusiasmado – e tem razão. “Tu queres ver que, no final, vamos descobrir que o cristianismo é superior às outras religiões?”, pergunta novamente o leitor – e volta a ter razão. Apelo agora ao leitor para que se cale, porque tenho coisas para dizer. A primeira é que o início do conto desilude: Maria aproxima-se dos amigos, que estão numa mesa da cantina da faculdade, e diz-lhes que descobriu uma coisa “hoje de manhã, no duche”. Todos sabemos que a única coisa literariamente interessante que uma jovem rapariga pode descobrir no duche é o seu próprio clítoris (a propósito: clítoris ou clitóris? Que diferença faz? Esdrúxulo ou grave, é igualmente difícil de encontrar...). Calculem o meu desapontamento quando constato que aquilo que Maria descobre no duche é o seguinte: “(...) os infiéis, mesmo sendo infiéis, são muito mais felizes no reino de Cristo do que julgam vir a ser nas suas crenças.” Segue-se uma conversa aborrecida sobre religião, em que aproveitamos para imaginar quão melhor seria o conto se Maria tivesse, de facto, descoberto o clítoris. Surpreendentemente, ninguém pergunta a Maria porque é que Deus, do alto da sua infinita bondade, dedicou a época natalícia a fazer umas brincadeiras no mar do sudoeste asiático e a matar 60 mil desgraçados. Apesar de tudo, no final, diz Ibrahim: “E se a gente se deixasse de conversas e se agarrasse à Matemática? Os testes são logo a seguir ao Ano Novo e, se não marrarmos agora, não há espírito de Natal que nos salve.” É a primeira coisa sensata que alguém diz no conto inteiro – e é proferida pelo muçulmano. E depois a cultura ocidental é que é superior. RAP
posted by Gato 1:49 da manhã