quinta-feira, fevereiro 17, 2005
GUIA ELEITORAL: Escrevo neste blogue há quase dois anos e nunca tive oportunidade de apelar ao que quer que fosse. E o meu sonho, desde pequenino, é apelar a coisas. Não sei se já experimentaram a sensação, mas há toda uma magia inerente ao acto de apelar. Sonho com o dia em que o povo português esteja entretido a ver uma telenovela, quando, de repente, chego eu, e digo: “Apelo a isto!” ou - se acham este um bocado forte – “Apelo àquilo!” E é nessa altura que os dez milhões de portugueses desligam a televisão, viram-se uns para os outros e dizem em uníssono: “Hum... Isto que este senhor disse é assaz sensato. Vamos parar para reflectir um pouco e, de seguida, tirar as devidas ilações”. Escusado será dizer que o meu sonho é vir a ser Presidente da República, o Apelador Oficial (só Jorge Sampaio, segundo números oficiais, já fez 375 apelos à reforma fiscal, 163 apelos ao debate, 78 apelos à participação cívica e 15 apelos à serenidade).
Tudo isto para chegar ao apelo que pretendo fazer. Cá vai: apelo ao voto, no próximo Domingo. (Lá está: um apelo, previamente, feito por Jorge Sampaio. O que vale é que, quando se compete com os melhores, aceitamos mais facilmente o facto de não sermos os primeiros). Votar é dos actos que mais nos realizam como cidadãos e, por isso, é urgente que expressemos nas urnas o nosso ideal de bem comum. A não ser que esteja a chuviscar. Nesse caso, quero que a democracia se lixe.
E para que não se diga – como eu já ouvi por aí – que me estou a lixar para a democracia, aqui fica uma resenha do que foi esta campanha eleitoral, com o intuito de ajudar os indecisos a formarem uma opinião.
PSD. Tragicamente, o líder do PSD entrou na campanha logo a perder, muito por culpa das suas metáforas políticas. Por exemplo, o bebé na incubadora foi uma péssima imagem de Santana Lopes. E, depois daquela fotografia tirada no cruzeiro da Kapital, ele não se podia dar ao luxo de mais imagens desfavoráveis. Pior, só mesmo se a metáfora fosse sobre um bebé que está numa incubadora, que é agredido por toda a gente e que, ainda por cima, tem um lenço vermelho atado na cabeça, à pintas. Uma sucessão de tragédias, portanto. É claro que, se os dirigentes do Bloco de Esquerda estivessem minimamente atentos, aproveitariam esta situação para dizer ao país: “Estão a ver como este bebé sofre tanto? É preciso mais algum argumento a favor da legalização do aborto?”
Numa fase posterior, o líder social-democrata virou-se para a cutelaria, também sem assinalável sucesso. Ainda por cima, é bastante discutível a legitimidade de Santana Lopes para se queixar das “facadas” de que foi vítima. Será que o primeiro-ministro tinha assim tanta necessidade de convidar Pôncio Monteiro para nº 2 das listas do Porto, sabendo que era um homem assumidamente anti-Rui Rio? E será que não era de prever a reacção de Cavaco Silva àquele cartaz do PSD? É por tudo isto que defendo que Santana Lopes vai ficar conhecido na história como “o Alfredo Pequito da política portuguesa”. As facadas de que se queixa são da sua própria responsabilidade.
Outra estratégia duvidosa foi a exploração de boatos infundados sobre a vida privada do seu principal adversário. Não foi por acaso que, Santana Lopes dedicou os primeiros dias da campanha eleitoral só a propagandear a sua virilidade: passeou-se num avião da Força Aérea e exibiu os seus filhos perante a comunicação social. Comparativamente, José Sócrates fez pobre figura: distribuiu panfletos em Leiria (a pé!) e discursou sobre segurança social. Temo que o líder do PS continue a descer nas sondagens, se continuar a insistir em fazer política.
PP. Leio os parágrafos anteriores e fico desiludido. A intenção era vilipendiar o PSD, mas não tive metade da eficácia de um cartaz do PP. Há um director de campanha subtil que está de parabéns. Excelente ideia a de só exaltar no PP as qualidades que o PSD, comprovadamente, não tem (competência, lealdade, etc). Não me admirava se, nestes últimos dias de campanha, aparecesse mais um cartaz com a mensagem: “Vota PP. O nosso líder usa o cabelo curto atrás”.
Outra nota positiva: parece que é desta que Paulo Portas largou aquele reflexo condicionado de exigir mais polícias na rua. Toda a gente sabe que, em Portugal, a maior parte dos crimes são de colarinho branco. Ou seja, um político responsável devia era exigir mais polícias nos escritórios.
PS. A principal fragilidade apontada ao líder socialista tem sido a natureza ambígua do seu pensamento político. Mas temos que admitir que José Sócrates inaugurou um novo estilo de fazer política em Portugal. Até hoje, havia os políticos que não cumpriam as promessas. Agora, há os que não prometem. Confesso que, pelo menos no meu caso, esta estratégia está a funcionar na perfeição. Sim, vou votar no PS. Conformei-me com o facto de ser essa a única maneira de ficar a saber quais são as propostas de Sócrates para Portugal. Não é Paulo Portas que reclama para si o voto útil? Pois bem, o líder do PS aposta num novo conceito: o voto curioso.
Tudo isto não invalida que tenha sentido uma profunda desilusão, quando vi os nomes que constam das listas do PS. Se calhar, a culpa é minha. Mas leio as entrevistas do José Sócrates e ele fala tanto no Maquiavel, no Bertrand Russel, no Ghandi e no Churchill, que depois é um choque ver nas listas a viúva do Sousa Franco e a irmã do Manuel Alegre. Provavelmente, até estou a ser injusto em relação ao valor político destas senhoras, não sei. O que sei é que José Sócrates continua com propostas muito vagas. A certa altura, prometeu colocar as pensões dos idosos “ao nível do limiar da pobreza”, sem quantificar minimamente esse conceito. Está na altura de fazer uma adenda ao cartaz do PS: “Agora Portugal vai ter um rumo. Só ainda não sabemos qual é”.
PCP. Jerónimo de Sousa é apontado pela generalidade dos analistas políticos como a surpresa da campanha. No último congresso comunista, a necessidade de comprovar a modernidade do novo secretário-geral levou a que caísse nas redacções como uma bomba a informação de que Jerónimo era fã dos Beatles. Ou seja, na liderança do terceiro maior partido português, temos um homem que aprecia música dos anos 60 e ideias políticas dos anos 20.
BE. A campanha do Bloco de Esquerda ficou marcada pela gaffe cometida por Francisco Louçã no debate com Paulo Portas. O argumento que o líder do Bloco de Esquerda usou para justificar o facto de Paulo Portas não se poder pronunciar sobre a questão do aborto levanta fantásticas possibilidades. No novo referendo sobre o aborto que Louçã preconiza, seria justo que os cidadãos só pudessem votar, se fossem munidos do seu cartão de eleitor e de uma criança, que teriam de provar ser sua.
NOVA DEMOCRACIA. Apesar de não ter representação parlamentar, este partido já conseguiu um milagre: pôs, de novo, a Dina a cantar na televisão, em horário nobre.
O DEBATE A DOIS. Pensei seriamente em não abordar este tema, uma vez que não assiti ao debate entre José Sócrates e Santana Lopes. Ou, então, assisti, mas a coisa foi tão desinteressante, que não retive nada. Inclino-me seriamente para a segunda hipótese.
As expectativas em relação ao confronto televisivo eram enormes.
Lembro-me que faltavam quinze dias para as eleições e, até à altura, a discussão mais acesa entre os dois principais partidos tinha sido sobre o tempo que cada um dos candidatos podia dispor, durante o intervalo do debate, para retocar a maquilhagem. Ou seja, esperava-se que, a partir do confronto televisivo, a discussão política amainasse um pouco. Os populares já comentavam nas tabernas e paragens de autocarro que não se aguentava tanto jargão político.
Do lado dos jornalistas, a responsabilidade era enorme. Sabia-se de antemão que o interesse ou desinteresse do debate dependeria muito deles. De facto, num debate entre Santana e Sócrates, a única hipótese de haver substância é pôr os dois candidatos a debaterem as ideias dos moderadores.
Lembrei-me, agora, que vi o debate. Desculpem ter-vos enganado, mas sempre pensei que a mentira é ética quando permite corrigir uma grande injustiça no mundo ou fazer uma boa piada (logo duas coisas que eu, qualquer dia, tenho que experimentar). No meio de todas as banalidades que foram ditas, houve uma coisa que me surpreendeu bastante no desempenho de Santana Lopes. O primeiro-ministro desperdiçou a hipótese histórica de vincar bem a diferença entre ele e José Sócrates, nos moldes em que o tinha vindo a fazer até esse momento. Para isso, bastava ter pedido à moderadora presente no estúdio que se pusesse ao colo dele, durante todo o debate. Essa imagem teria valido por cinquenta cartazes da JSD e cento e tal insinuações torpes.
Apesar de tudo, quando passava o genérico final, percebi que há algo que me tranquiliza bastante num confronto televisivo entre estas duas figuras políticas: à partida, não há a mínima hipótese de um moderador os interromper para dizer a frase “por favor, pedíamos que não entrassem em questões tão técnicas”.
SONDAGENS. Cansado dos estudos de opinião que não lhe eram favoráveis, o líder do PSD ameaçou processar algumas empresas de sondagens, caso vencesse as eleições. Não deixa de ser irónico o facto de Santana Lopes processar alguém por incompetência.
JANTARES-COMÍCIO. É uma das instituições mais sólidas da política portuguesa e, se dúvidas houvesse, bastaria olhar para a presente campanha eleitoral. Às vezes, penso que, se o Tribunal Constitucional fosse tragicamente atingido por um meteorito (violando assim o artigo 87º da Cosntituição), a maior parte da população nem daria por isso. Mas, se acabassem os jantares-comício, isso representaria um rude golpe na democracia. É que os portugueses detestam comícios. Em contrapartida, adoram jantares-comício. Pensando bem, os portugueses adoram tudo o que tenha acoplado a palavra “jantar”. É por isso que proponho uma solução inovadora para resolver alguns dos principais problemas nacionais. Advogo a criação imediata de um “jantar-regulação da situação fiscal” para ajudar a combater o buraco orçamental; um “jantar-recital de poesia” para aumentar o nível cultural da população; e – porque não? – um “jantar-homilia” para fazer regressar os crentes às igrejas. Este é o tipo de propostas concretas e originais que não vejo os partidos a apresentar.
Apesar de ser adepto convicto do jantar-jantar, também consigo ver os convenientes dos jantares-comícios. Antes de mais, graças a eles, faz-se mais pelo problema da fome em duas semanas de campanha eleitoral do que em quatro anos de legislatura. Além disso, é algo que já está inscrito na nossa matriz cultural. Só em Portugal é que uma refeição é um acto político. No dia das eleições, imagino os eleitores-convivas fechados na cabine de voto, a cogitar: “Voto nos bifinhos au champignon socialistas ou no bacalhau à Braz social-democrata?”
VISITAS A FÁBRICAS. É outra acção de campanha tradicional, mas no contexto destas eleições, ganha toda uma nova funcionalidade. Nada é mais adequado à mensagem subliminar que o líder do PSD pretende passar. Toda a gente sabe que demonstrar interesse por máquinas é de homem. Por oposição, contactar com pessoas é algo tendencialmente efeminado, uma vez que exige sensibilidade no trato. Ou seja, está encontrada a razão por que Santana chegou a defender que não fazia sentido a campanha de rua. Agora, só falta perceber porque é que, um dia depois, já fazia.
CHOQUE. De repente, quase todos os políticos desataram a falar em “choques”, menos Jerónimo de Sousa que só usa expressões inventadas no século XIX, tais como “Homem Total” (inventada por Marx) e “um olho no burro e outro no cigano” (inventada por outro filósofo político, cujo nome agora não me recordo). Durão propôs o “choque fiscal”, Sócrates o “choque tecnológico” e Portas o “choque de valores”. A razão é simples: em Portugal, já ninguém acredita na palavra “reforma”. O problema é que, a este ritmo, também o “choque” será banalizado. Quando isso acontecer, preparem-se para, muito brevemente, ver escrito num cartaz o próximo passo lógico: “Propomos o curto-circuito ambiental” ou “Prometemos a fusão a frio educacional”.
MENINO GUERREIRO. O hino escolhido pelos brasileiros do PSD para passar em cima das imagens do seu líder incluía frases como “Um homem também chora / Também deseja colo / Palavras amenas / Precisa de carinho / Precisa de ternura”. Face a isto, pergunto: Santana Lopes quer ganhar as eleições, ou quer engatar o povo português?
Por fim, quero aqui deixar uma última mensagem aos indecisos: arranjem uma personalidade, pá. MG
posted by Gato 2:59 da manhã