quinta-feira, agosto 12, 2004
SOBRE O POST ANTERIOR: Recebi dois mails de leitores indignados com o facto de eu ter feito uma piada que envolvia a deficiência física de Stephen Hawking. Confesso que, antes de escrever o post, hesitei. Sejamos francos: à partida, todos nós temos tendência para ficar chocados quando alguém faz humor sobre deficiências profundas. Mas o que está por detrás dessa atitude protectora? É simples: a ideia de que os deficientes são uns coitadinhos. Poupá-los à pilhéria, eis a expressão suprema da piedadezinha. Ora, apesar de não podermos negar que eles de facto carregam um fardo muito pesado, uma das maiores dificuldades que os deficientes enfrentam é precisamente conseguir libertar-se desse modo que a sociedade tem de olhar para eles. Essa protecção que lhes reservamos é, ao mesmo tempo, uma perversa forma de os inferiorizar.
Quem, como eu, cresceu a ver dramalhões televisivos dos anos 80, sabe que há duas coisas que os deficientes abominam: que alguém os tente ajudar, quando eles não precisam (atenção, isto não é uma indirecta para os autores dos mails indignados); e que se tenha pena deles. Ninguém consegue suportar uma existência baseada na comiseração alheia. A pena não edifica. Pelo contrário, abafa, estiola, gera acomodação e desistência.
Ao invés, o humor pode desempenhar um papel bem mais positivo, graças ao efeito de desdramatização. O humor retira peso a situações quase insustentáveis (enunciado que é exemplarmente ilustrado em A Vida É Bela de Roberto Benigni), ajuda-nos a lidar com as nossas dificuldades e limitações.
Talvez por isso o visado no meu post, o físico Stephen Hawking, tenha aceite emprestar a voz ao seu boneco, num episódio dos Simpsons. Aqui ficam alguns excertos:
Skinner: I'm sure what Dr. Hawking means is --
Hawking: Silence. I don't need anyone to talk for me. Except this voice box.
(…)
Lisa meekly asks the crowd to stay calm, but a full-scale Springfieldian riot quickly develops. Hawking figures it's time tomake his escape and activates ... his automatic toothbrush. Oops -- wrong button.
(…)
Hawking: Your theory of a donut-shaped universe is intriguing, Homer. I may have to steal it.
Homer: Wow, I can't believe someone I never heard of is hanging out with a guy like me.
Moe: All right, it's closing time. Who's paying the tab?
Homer: [imitating Hawking's voice box] I am.
Hawking: I didn't say that.
Homer: [still imitating] Yes I did. [a glove comes out of Hawking's wheelchair, bopping Homer in the face] [still imitating] D'oh.
A auto-ironia atinge o seu clímax aqui, onde se pode adquirir a action figure de Hawking. É o deboche completo, portanto.
Resumindo, se encararmos Hawking como um ser humano cuja identidade não se esgota na sua deficiência física, como um homem que não se deixou inferiorizar pela sua condição de deficiente, então discriminação seria não fazer piadas sobre ele. Podem-me pôr mil violinos a tocar junto ao ouvido, eu não consigo ter pena de Hawking (por exemplo, tenho muito mais pena de mim). Quem se transformou num cientista de topo, quem virou a tragédia em seu favor daquela maneira - eu, por exemplo, nunca consegui ficar quieto a estudar durante muitas horas seguidas, tudo por causa do maldito bicho-carpinteiro -, quem ainda tem o sentido de humor necessário para parodiar a sua condição não passa de um sacana que merece a nossa mais profunda inveja. E toda a gente sabe que o humor é mais nobre quando é feito à custa dos fortes e poderosos.
De resto, o humor em que me reconheço – Monty Python, Woody Allen, Herman José, Jerry Seinfeld, Larry David, etc - nunca receou chocar algumas almas mais circunspectas. Pelo contrário, cada um deles contribuiu para esticar os limites do risível. Só para dar dois exemplos, na série The Office, uma das equipas que participa num concurso de cultura geral chama-se “Stephen Hawking’s Football Boots”; e no episódio “The Handicap Spot" da série Seinfeld, pode ler-se:
George: Must be one of those rich, spoiled handicapped people, who didn't want to do any work, and just wanted to sit in her wheelchair and take it easy.
(…)
Salesman: This is out best model. The Cougar 9000. It's the Rolls Royce of wheelchairs. This is like... you're almost glad to be handicapped.
Kramer: So now, what's this got?
Salesman: Inductive joystick, dynamic braking, flip-up arms, it's fully loaded. I put Stephen Hawking in one of these two months ago, he's lovin' it! It's rated number one by Hospital Supply and Prosthetic Magazine.
Peço imensa desculpa. Só agora é que me apercebi de que efectivamente há humoristas que praticam, sem abrir excepções, um humor politicamente correcto, em que é impensável fazer-se uma piada sobre deficiências físicas. A saber: Malucos do Riso, As Lições do Tonecas, Marina Mota e os Parodiantes de Lisboa (Novos e Velhos). É claro que o paternalismo acaba por os denunciar. Por exemplo, - e abordando agora a questão da raça - não me recordo de nada mais racista do que aquilo que algumas séries e filmes americanos fazem, quando criam uma personagem negra que é simpática para além do humanamente possível. A simpatia dessas personagens é tão transbordante que, nos filmes de acção ou de ficção científica, elas são sempre as primeiras a levar com uma bala ou um raio laser. A mensagem subliminar é: “Vêem como os negros, afinal, são uns tipos porreiros? Não precisam de ter medo deles. Eles são completamente inofensivos.” Por isso é que a solução encontrada pela sitcom All in the Family é soberba: Mr. Jefferson é a personagem negra mais antipática e arrogante que jamais surgiu no pequeno écran; Lionel parodia justamente a figura do negro simpatiquíssimo e submisso.
A tudo isto, acresce que o meu post é completamente inofensivo. A mim até me pareceu poética (mas eu sou suspeito, porque também acho poético o Eusébio a cortar as unhas do pé direito) a ideia de que Hawking, assim como encontrou na informática um modo de ultrapassar as limitações profissionais impostas pela sua condição, também aí teria encontrado uma saída para o seu problema sexual. Nada de escabroso, parece-me.
Em jeito de despedida, deixo-vos com um dilema que me acompanha há vários anos: um deficiente com motorista deve ter direito a estacionar nos lugares reservados a deficientes? Analisemos os dois lados da questão. Por um lado, a viatura é, em rigor, pertença de um deficiente. Por outro lado, se ele tem um motorista, então este pode muito bem deixá-lo à porta dos locais e de seguida ir à procura de um lugar normal. Reflictam nisto. Ou então mandem-me mails de indignação. O mais imaginativo ganha um fim-de-semana na Madeira para duas pessoas, em regime de meia-pensão. MG
posted by Gato 10:04 da tarde